terça-feira, 3 de novembro de 2009

O Cru e o Cozido

Com muita alegria no coração e bastante desprezo na alma, era assim que o titio malvado e o priminho do Van Grogue o trataram quando se viram a sós com ele, na sala mal arejada do pequeno apartamento no Centro de Tupinambicas das Linhas.

O ódio todo que compunha aquelas estruturas do adulto agressor, impossibilitado de se dissolver nas agressões contra o pai do menino ingênuo, voltava-se contra o fofinho, retardado mental, que a tudo suportava, sem conhecer a etiologia da insensatez dos prejudicados.

Eles estavam no apartamento modesto situado numa das ruas centrais mais movimentadas da cidade, no final da década de 1960. O marmanjo frustrado, agressor de criança, vivera um passado em que, na gandaia permanente, perambulava de bar em bar buscando a felicidade. Encontrara no jogo de baralho um lenitivo para sua angústia, loucura e violência.

Diziam que durante um momento da vida errante que tivera, o tio do Grogue perdera, no carteado, parte da fortuna deixada por seu pai, - avô do menino -. E que numa tentativa vã de se estabelecer por contra própria, iniciara uma empresa comerciante do mais puro café tupinambiquence.

Mas por ser necessário muito juízo e bom senso, a quem quisesse se firmar no comércio, falhou logo a empreitada do tio perverso. De derrocada em derrocada, não tinha como explicar sua impotência se não a atribuísse à incúria do pai do Grogue.

E como não conseguia atingir o próprio irmão, valia-se do menino tonto, descarregando nele as tensões das frustrações. Groguinho, por sua vez, ante as constantes situações em que se via humilhado, buscou aprender novas habilidades que pudesse demonstrar, obtendo respeito.

Foi nessa época que Groguinho comprou e leu “O Cru e o Cozido” do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss.

O tio do Van, quando viu a obra, que o menino lhe mostrava, ali naquela sala mal ventilada, pensou tratar-se de um livro de culinária e lhe perguntou se faria o cozido no forno do seu fogão quatro bocas. E percebendo o vacilo do menino, o tio feroz disse:

- Se você não souber cozinhar chame logo a Claudete. Você conhece a Claudete?

Quanta maldade! Os covardes, sem dúvida nenhuma, seriam capazes de, em atos puros de vingança, se aproximar do leito do paciente de recente cirurgia cardíaca, provocando-lhe a morte ainda na UTI.

A questão que não queria calar na mente do menino retardado era: estariam certos os herdeiros prejudicados, em praticar maldades às ocultas, contra seus primos e sobrinhos, diante dos prejuízos que sofreram?

É claro, nobre leitor, que os cruéis julgavam agir de forma correta diante das injustiças que padeceram. E foi assim, com essa convicção, que disseminaram durante dezenas de anos, os venenos mortais contra Groguinho, seus irmãos e tios, na cidade, matando-lhes a alma.

As ações praticadas pelos ruins poderiam ser traduzidas assim: “Quero o que me pertence, mesmo que isso implique na morte ou na doença de quem o possua”.

Muito macho isso, não?



Fernando Zocca.

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