quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O besouro

- Pery Kitto era ladrãozinho safado desde o tempo em que, quando criança, jogava futebol de mesa na casa da tia. A marmota improvisava os botões dos times colando figurinhas dos jogadores no que ele chamava de “celulose” dos relógios de pulso. - A afirmação gravíssima saiu dos lábios do já atordoado Ado Henrique, logo pela manhã no bar do Bafão.
O barman se acostumara com o jeitão de macho rústico do forasteiro, chegado à Tupinambicas das Linhas há uns trinta dias, que justificava a agressividade gratuita com o bordão “aqui o sistema é bruto - O senhor tem mesmo certeza de que pode beber? Não vai lhe fazer mal tanta pinga já cedo? – Na verdade Bafão preocupava-se mais com a integridade do seu mobiliário, que estaria sujeito a danos sérios, em decorrência de um possível descontrole do bebedor, do que propriamente com a saúde do cachaceiro.
- Bah, que dúvida! Sou curtido na pinga tche! Mas como lhe dizia esse tal de Pery Kitto antes de começar os jogos falava que valia o “leva-leva” pra tocar os botões. Mas quando chegava a vez do adversário ele trocava tudo, garantindo que a regra era a de três toques. Você acredita seu Bafão, que numa tarde quando Pery Kitto, com o time do “Curintcha”, perdia o jogo pro primo dele, teve a coragem de soltar o gás dentro da cozinha? O cara era safado, meu! Sabe o gás? Esse de botijão? Então meu, o cara empestou o ambiente só pra melar a vitória do melhor. Mas pode uma coisa dessas, mano?
- É verdade tudo isso? – Bafão simulava interesse. Seu objetivo era mesmo o “carvão” do freguês.
- É sim, seu Bafão! Com certeza! O Pery Kitto odeia porco. Nem toque no assunto de torresmo que ele enlouquece. E feijoada então? Sabe dessas que vai pé de porco, orelha e joelho? Então, o cara se enfurece. Nem toque no assunto!
- Não tenho visto o Pery Kitto. Ele sumiu, dizem que está doente. Será que é verdade? – indagou o barman ligando o rádio.
- Está com o pé esquerdo inchado, mas muito cuidado com esse tal de Pery Kitto. Ele é mais falso do que dólar com esfinge de galo.
- Olha, essa aqui é a segunda cerveja que tomo hoje. E já acabou. Aproveita e me dá outra super gelada. – Ado Henrique queria se esbaldar na gandaia a partir daquele momento.
Quando servia o cliente, Bafão percebeu que Van Grogue entrou em silêncio. Ele não foi visto por Ado Henrique.
- Assombração, de onde vieste? O que desejas aqui na terra do testudo? – murmurou Van Grogue num tom baixo e grave. E depois:
- Olha o gambá! O gambá vai te cercar... Vai te comer os cornos...
- Engraçado, seu Bafão, mas bah! De repente me veio a idéia daquele tal de Grogue. Por onde andaria o fulano? – indagou Ado Henrique sentindo os pêlos dos seus braços eriçarem.
- Ah, aquele tem uma chácara lá no bairro Floresta. Trabalha no Detran; ganha quatro mil e quatrocentos reais por mês; quase não aparece por aqui. Ele possui um fusca e a namorada dele chama-se Terezinha. Sabe seu Ado, o Grogue foi muito mal tratado aqui em Tupinambicas das Linhas. O Jarbas e a chefe de gabinete dele, a tal de vovó Bim Latem, lançaram a seita maligna do pavão-louco contra o miserável. Envenenaram a caixa d´água da casa do infeliz e quase mataram todo mundo. O Grogue não pode nem ouvir falar em Jarbas que vomita – informou o prestativo Bafão, passando o guardanapo branco sobre uma mesa.
- Vade Retro satanás! – murmurava Van Grogue oculto atrás de um armário postado na parede oposta a do balcão – Ô carniça, besouro cascudo de cocô de vaca, você não tem outra camisa a não ser essa cor de rosa?
- Seu Bafão! Que esquisito! Sinto a presença do Van Grogue. Mas não o vejo. Estou enlouquecendo?
- É, o senhor não está muito bem, não. Acho melhor procurar ajuda. Conhece o doutor Silly Kone?
- Hum... Silly Kone? Quem é? – o tom de voz do Ado Henrique denunciava dor, inquietação e sofrimento.
- É gente fina. Dizem que os choques que ele aplica não passam dos 120 volts. Dão umas entortadas no cara, mas tudo fica bem depois. O senhor não quer experimentar? – havia certa ironia no falar do Bafão. - Olha, não quero me gabar, mas acho que um ou dois poderiam resolver o seu problema.
- Vamos deixar quieto esse assunto – afirmou Ado Henrique pagando a despesa e saindo sem perceber a presença do Grogue.
Depois que se viram a sós Van perguntou:
- Já imaginou se eu trabalhasse mesmo no Detran de Tupinambicas das Linhas e recebesse R$ 4.400 por mês?
- Seria o esplendor. Quem gosta de besouro é entomologista – arrematou Bafão, abrindo a primeira garrafa de cerveja.



Fernando Zocca.


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