domingo, 20 de setembro de 2009

As chaves


Telma caminhou a manhã inteira pelas ruas, logo depois de chegar à rodoviária de São Paulo. Exausta pensou em entrar numa lanchonete onde pediria uma Coca.


Pisou com o pé direito na soleira do boteco, torcendo por não encontrar oposição. Ao sentar-se num daqueles bancos contíguos ao balcão, notou que espantara algumas moscas chegadas antes.


Quando fez o pedido, tocou levemente o bolso onde sabia estar o maço das notas. O envelope pardo envolvente do numerário fora dispensado logo depois dela ter deixado a casa da velha: "Ô mulher chata! Dormia com a boca aberta, escancarada mesmo, e roncava feio!" - pensou a adolescente colocando um canudinho verde e outro amarelo dentro da lata recém servida.


O rádio emitia uma canção suave: nela pedia-se um pouco mais de malandragem. "Será que ao detetizarem o ambiente não teriam respingado coisa ruim na latinha?" O pensamento fugaz não a impediu que percebesse a fome.


Quando ela fitava o recipiente dos salgadinhos, um motorista de táxi entrou no recinto fazendo estardalhaço:

- E aí Cláudio... Tudo certo por aqui? - perguntou o jactante ao balconista sorridente.


Como acontece nesses casos, a própria figura do freguês induz respostas esperadas, sem nem mesmo haver a expressão dos pedidos verbais corriqueiros: o dono do botequim colocou sobre o balcão um copo americano onde despejou a piribita. Em ato contínuo botou, ao lado da azuladinha, um maço de LM.


O motorista vangloriou-se:

- Rapaz... Ontem comi um filé de pescada que me deu gosto! - Seu interlocutor respondeu:

- Eu prefiro filé à parmeggiana.

Telma ao deglutir o derradeiro gole do refrigerante por pouco não engasgou. Suas cordas vocais constritas tornaram quase inaudível o pedido da conta.


Ao sair caminhando pela rua ensolarada teve a convicção de que não suportaria nem mais um minuto aquele sufoco. Suas forças esmaeciam.


O ruído causado pelos veículos, o cheiro do combustível queimado e a luminosidade levaram-na a buscar o ansiolitico na mochila.


Passou defronte uma loja. O pensamento de que deveria embarcar imediatamente para a Bahia assaltou-a. As pessoas aglomeradas ali, naquele horário, observavam uma dezena de televisores ligados simultaneamente.


Numa das telas planas da TV de 29" uma chamada para a próxima novela mostrava parte da trama envolvente. Seria a história do alquimista desejoso de livrar-se das amarras, a ele impostas, pelo prefeito da cidade. O mago planejava vencê-lo usando os poderes ocultos da alquimia.


O calor sufocante fazia exsudar as gotículas de suor na sua pele alva. Ao passar a mão pelo ventre percebeu ter engordado. Desanimada viu-se sem destino. Talvez uma favela pacífica.


Quando se pôs a caminhar novamente, um mendigo cercou-a no meio da calçada. A proximidade daquele ser conspurcado fez com que ela sentisse seu bafo hediondo.


O branco dos olhos do bêbado mostrava-se congestionado; manchas vermelhas enormes denunciavam a intoxicação danosa. Ao esquivar-se do pingueiro, Telma abaixou, sem querer a cabeça. No chão jaziam algumas chaves tetra.


A incidência direta da irradiação solar sobre seu cocuruto congestionou-o fazendo-a perder os sentidos. Quando desabou na calçada quente atraiu a atenção dos transeuntes. Nenhum deles, porém se dispôs a socorrê-la.

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